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Annotations: eles estão em todas as partes

 

Nobuyoshi Chinen - 20/11/06

É comum que, ao elaborar uma obra, um autor procure acrescentar informações adicionais à trama, extraídas a partir de seu repertório cultural. Tais referências podem ser detalhes quase imperceptíveis, uma mensagem hermética somente para iniciados com função apenas acessória, ou ter uma importância crucial na compreensão do enredo.

Vão desde uma homenagem sincera a fatos, obras e pessoas que o influenciaram até a descarada apropriação de características inteiras de trabalhos alheios. De modo geral, funcionam como um código que estabelece uma espécie de jogo com o espectador/leitor/receptor, que precisa dominar o mesmo repertório para entender e fruir a mensagem, e com isso se sentir gratificado.

Essa prática é adotada em todas as formas de arte. Na pintura, o exemplo mais notório é a pop-art, cuja proposta é, justamente, se apropriar de elementos da cultura pop. As telas de Roy Liechtenstein, com suas ampliações de vinhetas de gibis, são uma mostra recorrente desse gênero, mas os dadaístas já faziam isso muitas décadas antes. Na literatura, um especialista em embutir referências em seus livros é Umberto Eco.

Citações de Eco
Em entrevista ao jornal La Republica, republicada pela Folha de S. Paulo em 16 de julho de 2006, Eco descreve algumas das diversas citações usadas em seu primeiro romance O Nome da Rosa. O nome e as características do vilão Jorge são inspirados no escritor argentino Jorge Luís Borges e o protagonista, Guilherme de Baskerville, é uma referência a Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, uma vez que, além de se utilizar de métodos investigativos do famoso detetive, tem o nome emprestado de uma das tramas mais famosas do personagem inglês.


Eco admite até que, ao iniciar o primeiro capítulo do seu romance com um “Era uma manhã de sol de novembro”, teve a intenção de parodiar o estilo do Snoopy, que sempre começa a datilografar seus textos com “Era uma noite fria e tempestuosa”.

No cinema, já virou mania tentar adivinhar em qual cena o diretor/roteirista incluiu uma menção a outro filme. Um exemplo já clássico é a cena do carrinho de bebê descendo desgovernado os degraus de uma escada, de Os Intocáveis, que saiu direto do Encouraçado Potemkim, de Eisenstein. Filmes recentes como Matrix e Pulp Fiction são recheados de referências, perdendo apenas para as comédias que satirizam determinados gêneros como Top Secret e Corra que a Polícia Vem Aí.

Esse tipo de filme, aliás, provavelmente teve inspiração nas sátiras em quadrinhos da revista Mad, pioneira em homenagear (ou destruir), de forma explícita, ícones tanto da cultura pop quanto da erudita.

HQs atuais
Nos quadrinhos atuais, alguns autores são especialmente atenciosos às referências. Autores modernos (ou pós-modernos) como Alan Moore e Neil Gaiman (ao lado, personagem de seu blog), são os que as utilizam com mais freqüência, intensidade e propriedade.

Diferentemente dos autores de livros acadêmicos, que recorrem a notas de pé-de-página, esses roteiristas muitas vezes não dão explicação nenhuma ou o fazem de forma incompleta, deixando a cargo de abnegados pesquisadores a tarefa de decifrar o mistério escondido nos quadrinhos.


A cada uma das referências encontradas, os estudiosos chamam de annotation, em analogia ao hábito de se anotar na borda de um livro de texto, alguma explicação para o que foi lido.

Um site bastante interessante, que tem annotations de várias histórias em quadrinhos, mas particularmente rico em análise de obras de Alan Moore, é o www.enjolrasworld.com. Nele, estão disponíveis, entre outros, referências a V de Vingança, As Aventuras da Liga Extraordinária e Watchmen.

No site www.hoboes.com/html/FireBlade/Fluff/Comics/dreamer.shtml, há um annotation de The Dreamer, de Will Eisner, uma graphic novel que faz um relato disfarçado do período inicial da indústria de revistas em quadrinhos americana.

Os annotations muitas vezes são incompletos, pois seus autores não conseguem identificar todos os pontos que o quadrinhista deixou obscuros e, para alguns, toda colaboração que venha a complementar o trabalho é bem-vinda.

Obviamente, o interesse pelas explicações das entrelinhas de uma obra enriquece a experiência de sua apreciação, mas não pode deixar de ser um apêndice. Uma boa história em quadrinhos deve gerar prazer em sua leitura, ter uma narrativa envolvente e ser inteligível, independentemente de o leitor conhecer tais detalhes ou não.

Referências
THE ANNOTATED DREAMER: a graphic novella set during the dawn of the comic books. [site] Disponível em: http://www.hoboes.com/html/FireBlade/Fluff/Comics/dreamer.shtml. Acessado em 21 out. 2006.

ECO, Umberto. Misteriosa chama da rainha Loana. Rio de Janeiro: Record, 2005.

ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

ENJOLRASWORLD.COM. [site] Disponível em: http://www.enjolrasworld.com/. Acessado em 21 out. 2006.